O vício da observação ainda vai me levar à loucura. Ou, ao menos, tornar-me estranhamente íntima de uma realidade que não é a minha e que, por hora, tenho vago conhecimento. Pouco tempo depois de ter me mudado para a rua X (não me recordo quando, mas não faz muito tempo), reparei aquelas duas figuras. Figuras em todos os sentidos que essa palavra possa ter.
A minha visão limitada de mundo, comum à maioria das pessoas, que costuma ver exotismo em tudo, fez-me achar graça em miudezas de situações corriqueiras que, quando observadas com análise, tomam caráter peculiar. Não existe mal algum em uma avó morar com o neto, descerem e subirem ladeira juntos, irem ao supermercado e tudo o mais. Aquela, no entanto, não era uma simples dupla. Era engraçado e ao mesmo tempo agradável observar uma relação, à primeira vista, tão afável.
O garoto, branquelo e de finas pernas, tinha uma fronte de desculpa. Seu cabelo era em forma de cuia, um misto saudoso de John Lennon e Kurt Cobain. Talvez não só esteticamente esse mistura se dava. Ele tinha cara e pés de quem ouve rock – o All Star azul marinho (essa cor é característica) e as meias até as canelas não me deixam mentir. A aparência denunciava dezesseis anos, no máximo. Mas algo me fazia crer que esse adolescente, com cara de João, tinha uns vinte anos. Nas minhas subidas e descidas, eu ficava sempre atenta, na esperança de encontrá-lo, obviamente, na companhia da avó, carregando uma sacola de compras. Tinha uma cara meio nerd, mas ao mesmo tempo atraente. Nunca vou esquecer do dia em que o vi sem aqueles óculos horríveis: ele estava incrivelmente bonito (“lindo” seria mais poético, mas quero ser verossímil). Não lembro exatamente como, só sei que estava sem camisa, o que aparentemente não significa nada, já que – nesse quesito - estava mais para técnico de computadores do que para professor de física. Até hoje não consigo entender como aquele ser conseguia prender tanto o meu olhar. E era sempre ali que os encontrava, jamais em outro lugar. Quando eu sair daquela rua, o que mais será lembrado é certo.
Antes de relatar umas besteiras, normalidades interessantes apenas para cabeças como a minha, preciso destrinchar a figura da avó que, caso pudesse nomeá-la, Carmem seria a melhor opção. Baixinha, cabelo curtinho e grisalho, corpo robusto e estilo incomparável. Por isso, inclusive, quase não reparava o seu rosto. Apenas passava o olho em um conjunto típico e uniforme e logo deslocava a minha atenção para as suas roupas. Estas variavam muito, com dias de mulher de motoqueiro à hippie fã de Janis Joplin. Lembro vagamente (quero acreditar nisso!) que ela tinha uma tatuagem, parece que no braço ou no ombro, já gasta pelo tempo. Carmem manteve seu estilo verdadeiramente alternativo que, com certeza, carregou durante uma juventude de colocar inveja em muitos. Aparentava beirar (para mais ou menos) os sessenta anos.
A dupla era quase inseparável. Vez ou outra, encontrava João sozinho lavando um velho fusca amarelo claro. Essa carro, por sinal, era outro mistério. Parecia dividir o carinho do garoto apenas com Carmem. Já vi João lavando-o, limpando-o e até consertando o motor. Imagino que era um bem de família. Os dois, inclusive, já chegaram na porta do prédio juntos e à bordo desse mimo. Nada mais estiloso.
O que mais me intrigava era o contraste entre aqueles dois. O fato de vê-los sempre juntos e conversando alegremente fez-me pensar melhor em tudo isso. Eram uma senhora descolada e estilosa e um garoto franzino e dócil. Eles se completavam perfeitamente. Aposto que se os conhecesse, comprovaria todas as minhas teses. Tive a sorte de ouvir lapsos de conversas quando cruzava com eles. Confesso que ouvia mais a voz de Carmem. Certa vez, houve uma grande coincidência: quando sai do prédio, eles estavam na minha frente, seguindo a mesma direção que seria a minha. Apressei o passo e, quando estava logo atrás deles, recuei. Tudo para poder escutar a conversa e tentar descobrir um pouco daquele mundo. A surpresa foi enorme e, confesso, a felicidade também. Parte de minhas suspeitas confirmaram-se de maneira incrível. Carmem parecia indignada com algum fato. Não economizava “porras”, “puta-que-parius” e , quando fui obrigada a me distanciar, pude escutar um “é foda”. Já peguei-os rindo também. Engraçado é que Carmem era sempre muito falante e João atento, apenas escutando.
São meus vizinhos de um prédio ao lado. Neto e avó moram em um apartamento abaixo do nível do meu. Possuem uma espécie de área ao ar livre. Ali, pasmem, mandaram construir uma piscina. Não foram poucas as vezes em que pude ver João e Carmem cuidando dela, cobrindo-a para evitar sujeira. Aquela varanda, aliás, é um local que aparenta ser agradável aos dois. Outro dia, uma festa rolava por ali. Pude ver mesas e cadeiras apertadas no pequeno espaço. O som mecânico vinha de um vitrola, de onde saiam músicas de Elis Regina e Legião Urbana. Nossa! Eles usam vitrola! De fato, Dona Carmem deve mandar João ir à merda se ele disser que prefere usar um laptop. Quando voltei do meu afazer, bisbilhotei João tocando violão em uma rodinha de poucas pessoas. "Vovó", é claro, estava entre elas. Ele tocava Beatles; “Help!”, precisamente.
A minha visão limitada de mundo, comum à maioria das pessoas, que costuma ver exotismo em tudo, fez-me achar graça em miudezas de situações corriqueiras que, quando observadas com análise, tomam caráter peculiar. Não existe mal algum em uma avó morar com o neto, descerem e subirem ladeira juntos, irem ao supermercado e tudo o mais. Aquela, no entanto, não era uma simples dupla. Era engraçado e ao mesmo tempo agradável observar uma relação, à primeira vista, tão afável.
O garoto, branquelo e de finas pernas, tinha uma fronte de desculpa. Seu cabelo era em forma de cuia, um misto saudoso de John Lennon e Kurt Cobain. Talvez não só esteticamente esse mistura se dava. Ele tinha cara e pés de quem ouve rock – o All Star azul marinho (essa cor é característica) e as meias até as canelas não me deixam mentir. A aparência denunciava dezesseis anos, no máximo. Mas algo me fazia crer que esse adolescente, com cara de João, tinha uns vinte anos. Nas minhas subidas e descidas, eu ficava sempre atenta, na esperança de encontrá-lo, obviamente, na companhia da avó, carregando uma sacola de compras. Tinha uma cara meio nerd, mas ao mesmo tempo atraente. Nunca vou esquecer do dia em que o vi sem aqueles óculos horríveis: ele estava incrivelmente bonito (“lindo” seria mais poético, mas quero ser verossímil). Não lembro exatamente como, só sei que estava sem camisa, o que aparentemente não significa nada, já que – nesse quesito - estava mais para técnico de computadores do que para professor de física. Até hoje não consigo entender como aquele ser conseguia prender tanto o meu olhar. E era sempre ali que os encontrava, jamais em outro lugar. Quando eu sair daquela rua, o que mais será lembrado é certo.
Antes de relatar umas besteiras, normalidades interessantes apenas para cabeças como a minha, preciso destrinchar a figura da avó que, caso pudesse nomeá-la, Carmem seria a melhor opção. Baixinha, cabelo curtinho e grisalho, corpo robusto e estilo incomparável. Por isso, inclusive, quase não reparava o seu rosto. Apenas passava o olho em um conjunto típico e uniforme e logo deslocava a minha atenção para as suas roupas. Estas variavam muito, com dias de mulher de motoqueiro à hippie fã de Janis Joplin. Lembro vagamente (quero acreditar nisso!) que ela tinha uma tatuagem, parece que no braço ou no ombro, já gasta pelo tempo. Carmem manteve seu estilo verdadeiramente alternativo que, com certeza, carregou durante uma juventude de colocar inveja em muitos. Aparentava beirar (para mais ou menos) os sessenta anos.
A dupla era quase inseparável. Vez ou outra, encontrava João sozinho lavando um velho fusca amarelo claro. Essa carro, por sinal, era outro mistério. Parecia dividir o carinho do garoto apenas com Carmem. Já vi João lavando-o, limpando-o e até consertando o motor. Imagino que era um bem de família. Os dois, inclusive, já chegaram na porta do prédio juntos e à bordo desse mimo. Nada mais estiloso.
O que mais me intrigava era o contraste entre aqueles dois. O fato de vê-los sempre juntos e conversando alegremente fez-me pensar melhor em tudo isso. Eram uma senhora descolada e estilosa e um garoto franzino e dócil. Eles se completavam perfeitamente. Aposto que se os conhecesse, comprovaria todas as minhas teses. Tive a sorte de ouvir lapsos de conversas quando cruzava com eles. Confesso que ouvia mais a voz de Carmem. Certa vez, houve uma grande coincidência: quando sai do prédio, eles estavam na minha frente, seguindo a mesma direção que seria a minha. Apressei o passo e, quando estava logo atrás deles, recuei. Tudo para poder escutar a conversa e tentar descobrir um pouco daquele mundo. A surpresa foi enorme e, confesso, a felicidade também. Parte de minhas suspeitas confirmaram-se de maneira incrível. Carmem parecia indignada com algum fato. Não economizava “porras”, “puta-que-parius” e , quando fui obrigada a me distanciar, pude escutar um “é foda”. Já peguei-os rindo também. Engraçado é que Carmem era sempre muito falante e João atento, apenas escutando.
São meus vizinhos de um prédio ao lado. Neto e avó moram em um apartamento abaixo do nível do meu. Possuem uma espécie de área ao ar livre. Ali, pasmem, mandaram construir uma piscina. Não foram poucas as vezes em que pude ver João e Carmem cuidando dela, cobrindo-a para evitar sujeira. Aquela varanda, aliás, é um local que aparenta ser agradável aos dois. Outro dia, uma festa rolava por ali. Pude ver mesas e cadeiras apertadas no pequeno espaço. O som mecânico vinha de um vitrola, de onde saiam músicas de Elis Regina e Legião Urbana. Nossa! Eles usam vitrola! De fato, Dona Carmem deve mandar João ir à merda se ele disser que prefere usar um laptop. Quando voltei do meu afazer, bisbilhotei João tocando violão em uma rodinha de poucas pessoas. "Vovó", é claro, estava entre elas. Ele tocava Beatles; “Help!”, precisamente.
Não faltava mais nada, apenas coragem e idéias para conhecê-los melhor.
Um comentário:
massa o texto reny.. eh veridico ou ficção?? rsrs
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