Ela não é de se jogar fora. Acha um absurdo a existência de lugares destinados a receber os restos da humanidade. Faz de sua vida, então, um retalho de partes inacabadas. Partes de tudo. Partes que ainda serviriam. De todos os amores em vão, de todas as oportunidades deixadas para trás... de tudo ficou o resto, um pouco, o bastante para se recomeçar ou, de outra maneira, começar de novo. Vive só, o que facilita o envolvimento em loucuras da mente, perda de tempo, a vida a esperar e ela ali, a costurar remendos daquilo que aos outros já não passam de lixo. Isso mesmo, é gari. Errados são aqueles que pensam não haver lirismo neste posto. Ele está coberto por tudo o que está ali amontoado. E foi cavando como se procurasse vida que ela construiu tudo, desde a linda mobília do seu barraco até o último amor. Mas como, ela não é sozinha, no sentido amplo da palavra? Já ouviu falar de gente que vive da mente? É incrível o modo como transforma sua imaginação em sonhos de realidade. Adora pegar o saco de lixo da porta da república, há tanta história para se roubar. Certo dia pegou o álbum de um casal que acabara de se separar. A seqüência de fotos era uma linda história, imagina só, tudo detalhado, desde a apresentação no dia do aniversário de Carol até a despedida no aeroporto; naquele dia a garota (agora, veja só, ela) partiria. De quando em vez há livros e apostilas da universidade. Pega tudo e arruma por ordem de tamanho. Ao sentar na cama, parada e, admirada – muito mais que o normal pois não sabia ler – começa a “viagem”: “aquele eu li logo que entrei no curso de direito, aquele outro foi presente do meu terceiro namorado, tão bom aquele, o escritor é o meu favorito”. Nada lhe escapa; fosse até uma caixa de pizza, tudo que pode acumular vira base para suas histórias: sua vida, reciclável. A sua independência dá-lhe possibilidade de passar boa parte do dia, quando não trabalha, a organizar sua existência, o que iria para a memória, o que seria vivido e esquecido... Mas que bela roteirista!
Por toda a sua vida – sim, porque viver é sonhar – esteve dependente daquilo que os outros erroneamente descartavam. Ela, com uma inteligência quase que instintiva, realizou a grande besteira que faziam os outros em jogar provas de suas memórias no lixo, descartando possíveis ciclos que certamente culminariam em encontros, aprendizados, coisas boas e ruins, todo aquilo que lhes enche a vida. A sua é tão repleta de coisas, ela tem tudo dentro do seu mundo. Falta-lhe apenas uma mão estranha. Mas ela é só, é só ela, toda ela. Está tudo tão perfeito, para quê mudar? E assim sempre fecha os olhos às oito, acordando às cinco e , no meio tempo, vivendo anos.
Por toda a sua vida – sim, porque viver é sonhar – esteve dependente daquilo que os outros erroneamente descartavam. Ela, com uma inteligência quase que instintiva, realizou a grande besteira que faziam os outros em jogar provas de suas memórias no lixo, descartando possíveis ciclos que certamente culminariam em encontros, aprendizados, coisas boas e ruins, todo aquilo que lhes enche a vida. A sua é tão repleta de coisas, ela tem tudo dentro do seu mundo. Falta-lhe apenas uma mão estranha. Mas ela é só, é só ela, toda ela. Está tudo tão perfeito, para quê mudar? E assim sempre fecha os olhos às oito, acordando às cinco e , no meio tempo, vivendo anos.
4 comentários:
Eu queria que você sentasse do meu lado e declamasse. Deve ser um texto gostoso de se ouvir. Tem a beleza de uma flor viva achada na lata.
Quanto saber que espécie é esse seu rebento, vou de sugestões. Oswald de Andrade disse que é conto o que se quiser chamar de conto. Concordo. Mas como quer ser uma história, tem lá seus enleios com estrutura. Por exemplo, a presença de conflito. "Ela" não tem. É uma apresentação do modus vivendis da protagonista até a última linha. Massa, uma mulher que cata lixo e encontra, monta sua vida ali. O enredo não se desenrola. Acho que você poderia apanhar o embrião e desenvolver, achar um pontozinho entre as moscas e os urubus dela e soltar uma trama. Quem sabe um corpo, um atalho para a China?
;) Dicas chatas, vá lá, mas nego já mordeu muito meu tornozelo por essas. Vingança.
P.S.: Tem um conto que fala do tema. "Muribeca", de Marcelino Freire. Já te envio por e-mail.
Você que apagou o comentário, não tenha receio, diga o que tiver vontade!
Fosse uma história verdadeira, contada com tanto lirismo, você estaria muito perto de algum estilo de jornalismo literário. Quem sabe não possa desenvolvê-lo, como jornalista?
Lembra, inclusive, a seção "Brasiliana" de Carta Capital.
Mas, de qualquer forma, tente prosseguir escrevendo, também, alguns contos, preocupando-se, como disse Saulo, com o desenvolvimento do enredo.
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